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Ética e diversidade na instituição escolar PDF Imprimir E-mail
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Escrito por Solange Faria Prado   
Qui, 16 de Junho de 2011 00:00

1. INTRODUÇÃO

Discutir a relação existente entre Ética, Diversidade e Educação é nosso objetivo com este trabalho. Paralelo a essa discussão pretende-se, também, indagar os mesmos conceitos por meio de diálogo com autores como Veiga-Neto (2007), Boaventura Santos (2005), Ferreira (2006), dentre outros. Diante do contexto atual e, frente a legislação educacional brasileira, é importante que se reflita sobre o papel do professor no campo da Ética e da Diversidade discutindo a ação do docente no que tange à construção da autonomia de seus alunos para se tornarem um sujeitos críticos e conscientes de seu entorno.



A história da educação brasileira e a legislação pertinente são ricas em incluir, excluindo, os deserdados da terra, ou seja, os negros, índios, migrantes, moradores de periferia, moradores e trabalhadores do campo... Nessa perspectiva, o texto tratará, ainda, da necessidade do reconhecimento do Outro na sua singularidade e diferença a partir da real aplicabilidade da Lei 10.639/03 que poderá permitir, ainda que sem garantias, ao cabo de alguns anos, a inclusão dos afro-descendentes e demais excluídos no que tange ao (re)conhecimento da História africana e/ou mudanças de comportamento frente ao Outro, apesar de que, frente as desigualdades da realidade brasileira, especialmente nas áreas rurais, sabe-se que a lei ainda não é cumprida.

2. ÉTICA E ESCOLA

Discutir educação e diversidade étnico-racial, seja à luz da legislação, seja a partir da prática, tornou-se, atualmente, não apenas o mais intenso e caloroso tema para se debater mas também o mais contraditório. Refletir sobre essa temática nos faz indagar as práticas sociais e educacionais exercidas nas/pelas escolas que buscam validar políticas públicas e leis que preconizam processos os quais podem garantir ações de inclusão de todos os alunos, independentemente de cor, etnia, religião, gênero ou status social, para a manutenção do Estado Democrático de Direitos em todos os seus aspectos.

Consultando a Constituição Federal de 1988 encontramos em seus artigos 5º e 205º. a manifestação da igualdade de todos perante a lei e o direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN, promulgada em 1996, aprofunda o previsto no texto constitucional, pois seu artigo 3º prescreve que o ensino deve ser ministrado em igualdade de condições tanto para o acesso a ele quanto para a permanência nele. Em outras palavras, implícito à Constituição e às Diretrizes encontramos o discurso da inclusão.

Nessa mesma linha de raciocínio, somos levados a nos aprofundar em nossas indagações sobre a relação entre Ética e o processo educacional. Ao discutirmos essa temática, nos voltamos para a relação professor-aluno, a prática docente, o compromisso social que se assume quando se opta pela carreira do magistério e, também, para o processo de (ex)inclusão em sala de aula.

Atuar como docente é viver sempre em processo de ansiedade e expectativas frente ao Outro/aluno; é ter consciência da necessidade de estar aberto a novos valores e culturas, além de ter uma constante atitude reflexiva de sua prática e de sua ação. Ser docente implica conduzir o Outro para o exercício da liberdade, para a transformação mútua na condição de Sujeito. Para tanto, trabalhando com valores como tolerância, respeito e solidariedade, o docente facultará, aos alunos, o reconhecimento de limites. Esses, por sua vez, ao reconhecer tanto os limites que são impostos pela sociedade, como  o processo relacional com o Outro, aprendem a ser livres, pois aprendem a fazer escolhas.

Entende-se aí que ao possibilitar alternativas de seguir para um lado ou para outro, como princípio da Liberdade, o(a) professor(a) e, por extensão, a escola oportunizam aos alunos a capacidade de se autogovernarem, tomarem suas próprias decisões sem interferência externa e seguirem adiante. Uma vez sendo estabelecidos limites e cultivando hábitos sociais de relações de convivência baseados nas leis e na moral, forma-se o Sujeito que sabe fazer escolhas independentemente dos resultados a auferir.

Para ser um Sujeito autônomo, como nos lembra Ferreira (2006), é preciso, antes, interiorizar leis e, depois, decidir se as aceita ou não. Em vista disso, o autor nos alerta que o agir do docente, para tais fins, deve ser fundamentado em quatro princípios ligados à Ética. São eles: a justiça, a não-violência, a solidariedade e a responsabilidade. Do ponto de vista da justiça e da não-violência, somos convocados a recusar qualquer tipo de violência, pois viver sob a égide desses princípios é viver embasado no respeito ao Outro, admitindo, inclusive, que somos iguais em espécie e diferentes no aspecto da singularidade. Ao sustentar atitudes de justiça e de não-violência, somos tomados pelo reconhecimento do Outro como humano, independentemente de suas diferenças em relação ao Eu.

O princípio da solidariedade funda-se, retomando Ferreira (2006), no preceito do dever, pois ao perceber o Outro como alguém que pertence ao mundo, compreende-se que, como humanos, vivemos sob o signo das incertezas. A responsabilidade como princípio de fundamentação do educar para a vida exige atitudes de percepção, de captação, de reconhecimento do Outro na sua totalidade de condição humana e ser no mundo. Esse princípio reivindica, como os outros, o respeito pelos demais seres e coisas que estão no mundo.

De maneira sucinta, pode-se dizer que o agir e atuar no mundo como educador, como sujeito que tem escolhas, das quais não se podem prever resultados deve ser um agir e um atuar ancorados na justiça e no respeito, uma vez que este abarca, por força de circunstâncias, todos os demais princípios que sustentam uma conduta ética.

Considerando que a escola é uma instituição voltada para o cuidado e formação de sujeitos em um longo espaço de tempo; que o professor deve ter a ética como sua morada e que temos leis que nos coíbem de negar o Outro, podemos nos questionar  o porquê da sociedade atual estar envolta a tanta violência, amoralidade e individualismos. Precisamos pensar a escola como espaço para trabalhar o conhecimento-emancipação, um conhecimento que procura superar a ignorância representada pelo colonialismo, e em constante busca da solidariedade[1]

De acordo com os filósofos, a escola, como instituição social que deve cuidar para que seus egressos vivam sob a justa medida, não foi capaz, em vista das mudanças sociais, econômicas, culturais e ideológicas e, especificamente, em função da ausência de valores, de refletir sobre esses aspectos e internalizá-los como instituição. O acelerado ritmo das mudanças que hoje vivemos, o imediatismo de nossa sociedade e a pletora de informações que nos bombardeiam diuturnamente, faz com que a escola, que não acompanhou essa caminhada, mantenha-se presa às tradições tornando-se punitiva, ultrapassada e, o pior, de forma autoritária, conseguiu transformar o aprender, misto de sofrimento e deleite, em algo chato e dispensável.

Nesse sentido, adicionando o fenômeno da ferocidade da globalização, emerge outro aspecto nessa reflexão. Como pensar em manutenção de um Estado Democrático de Direitos, em cidadania se, na relação com o Outro, somos individualistas e rogamos o direito do Outro somente quando os direitos pessoais são ameaçados? Sobre isso, nos alerta o filósofo, o que se observa é uma exigência ética, como se fosse possível ser ético sem aprender valores necessários à construção de um novo mundo. O que se percebe é a estratégia de permanecer no poder, visualizando e cultivando interesses pessoais apresentados como coletivos. Não se separa o que é de domínio público e privado (FERREIRA, 2006, p.67, grifos nossos).

Em vista disso, nossa consciência nos orienta a novamente refletir sobre as políticas de inclusão e problematizar questões sociais, culturais, políticas, ideológicas, pedagógicas.

3. (RE)CONHECER PARA INCLUIR

Historicamente, somos frutos de uma sociedade excludente devastada pela desigualdade e, sobretudo, pela diferença. O colonialismo retirou de nós a solidariedade e o reconhecimento. No dizer de Hobsbawm (1995), a sociedade brasileira é um monumento à negligência social. Conforme dados da UNESCO (2006), embora o Brasil seja um país com área de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, com forte setor industrial, agricultura vasta e diversificada, além de grande potencial energético e riqueza mineral, com uma população estimada em mais de 190 milhões de habitantes,  possui persistentes índices de desigualdades e discriminação.

Forjado numa estrutura social estratificada, a desigualdade sócio-econômica brasileira tem origem num passado em que a prática da escravidão desempenhou importante papel na perpetuação de preconceitos e discriminações, além da manutenção de privilégios de poucos em detrimento de muitos. Segundo os estudos realizados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em seis regiões metropolitanas – Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre –, em junho de 2009, o número de pessoas consideradas pobres no Brasil era da ordem de 14,4 milhões[2]. Representação elevada, considerando que apenas seis cidades foram alvo da pesquisa.

Forçado pelo texto constitucional, o Estado brasileiro e seus governantes vêm, por meio de dispositivos legais, implantando políticas que visam à inclusão daqueles que ainda não tiveram acesso ao usufruto do preconizado nos preceitos da Democracia. Mas até que ponto tais políticas não são dispositivos de controle social?

Veiga-Neto e Lopes (2007), baseados nos conceitos de governamento e biopoder[3], termos cunhados por Michel Foucault, apontam que, no Brasil, as políticas de inclusão “parecem ignorar a diferença”, desconhecem a cultura do Outro, seus saberes e suas experiências. Segundo os autores, as políticas educacionais, ao defender a inclusão do diferente, entendem-no como um exótico e isso resulta no (...) paradoxo de silenciar aqueles que “já estavam ali”, de reforçar as noções de normalidade e anormalidade, de fazer proliferar e de disseminar as normas e os correlatos saberes especializados, e, até mesmo, de gerar exclusão... Desse modo, ao invés de promoverem aquilo que afirmam quererem promover – uma educação para todos –, tais políticas podem estar contribuindo para uma inclusão excludente (VEIGA-NETO, LOPES, 2007, p. 949)

“Silenciar aqueles que ‘ali já estavam’? Se esse contingente de deserdados, que precisam de uma política para incluí-los, “ali já estavam”, por que não foram ouvidos antes? Em textos de Boaventura de Sousa Santos, é possível encontrar explicação para a surdez do sistema em relação ao excluídos. Segundo o sociólogo, os excluídos não são ouvidos porque não existem. Essa (in)existência, apresentada em cinco formas, não somente silencia, mas também, elimina os sujeitos e suas realidades.

(...) são, assim, cinco as principais formas sociais de não-existência produzidas pela epistemologia e pela racionalidade hegemônicas: o ignorante, o residual, o inferior, o local e o improdutivo. Trata-se de formas sociais de inexistência porque as realidades que elas conformam estão presentes apenas como obstáculos em relação às realidades científicas, avançadas, superiores, globais ou produtivas. São, pois, partes desqualificadas de totalidades homogêneas que, como tal, confirmam meramente o que existe e tal como existe. São o que existe sob formas irreversivelmente desqualificadas de existir. (SANTOS, 2005, p. 24).

Não obstante à legislação e às políticas públicas que delas emanam, promover a inclusão do Outro não pressupõe seu reconhecimento. Dussel[4], é enfático ao afirmar que a aproximação do Outro não se dá pela diferença, mas pela semelhança, pelo reconhecimento do ser do Outro no reconhecimento do próprio ser. Assim, para incluir, precisamos nos aproximar do Outro, buscar a alteridade, permitir-se ao diálogo e ao conflito devido às novas situações- problema a que estaremos sujeitos. Isso permitirá que o Outro deixe de ser marginalizado e invisível, pois extirpa qualquer forma de hegemonia ou centramento cultural.

Todavia, tirante a incerteza de que o que se propala não passa de um discurso político, pois em muitas situações desconsideram-se as injustiças históricas e sociais da realidade brasileira, o pouco que já se conquistou é fruto de árdua luta de grupos socialmente organizados que não se permitiram calar, muito menos ser invisíveis e, ao longo de suas trajetórias, vêm guerreiramente garantindo seus espaços, suas identidades, suas singularidades. Nessa esteira, observa-se que a escola, estruturada e moldada em conjunturas sociais e econômicas do passado, por mais que se discuta e force uma reflexão e mudanças no plano interno, não acompanha a reestruturação social, mantendo uma regularidade em suas ações, permitindo que aqueles que por seus portões adentrem reforcem a internalização de suas certezas e convicções. Essa ação contradiz as intenções políticas de inclusão e formação dos Sujeitos.

Incluir, nesse sentido, é muito mais que apontar que um deserdado possa vir a pertencer ao bloco dos herdeiros. A inclusão é reflexiva, mas não necessariamente simétrica.

4. RECONHECIMENTO E VALORIZAÇÃO DO SUJEITO POR MEIO DA HISTÓRIA

Durante anos, a História do Brasil foi fruto de uma visão eurocêntrica e monocultural que enaltecia os feitos heróicos dos europeus e denegria e dizimava aqueles que aqui já se encontravam ou para cá foram trazidos como “coisas”, “peças” para servirem de instrumentos e/ou ferramentas nas lavouras de cana-de-açúcar. Trabalhar com a disciplina História nessa perspectiva é negar a construção de uma nação fundeada na exploração, desigualdade, preconceito, discriminação e no racismo. Como Aparelho Ideológico do Estado (AIE), a escola foi agente de propagação de valores e ideologias de uma pequena elite de brancos que viam na população negra uma nódoa a ser exterminada do seio da nação brasileira. A “política de branqueamento”, iniciada com a imigração de europeus para as lavouras do café no vale do Paraíba em São Paulo e para o Sul do país, foi uma das primeiras ideologias a serem plantadas para germinar o preconceito e a discriminação com aqueles que literalmente deram seu sangue para construir as riquezas dos detentores do poder no Brasil.

Associada à “política de branqueamento” assistimos, a partir da década de 30, a consolidação do mito da democracia racial como modo de garantir a formação da identidade nacional. Ao forjar a identidade nacional fundamentada no mito da democracia racial, presenciamos o ocultamento de outras identidades e a negação de outras culturas que não eram de matriz européia. A negação de identidades e culturas diferentes da do homem branco europeu associada aos preceitos do Artigo 205 da Constituição Federal de 1988 e do Artigo 25 § 4º[5]da lei 9.394/96, incitou a promulgação da Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003 que alterou a LDBEN, tornando obrigatória a inclusão do tema “História e Cultura Afro-brasileira”, acrescentando às diretrizes educacionais, o Artigo 26-A.

Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileira (BRASIL. Lei 10.639/03).

Mesmo sendo parte do discurso internacional que defende a implantação de políticas sociais focalizadas para as minorias, e, ainda, sendo pauta de reivindicações e objeto de luta do Movimento Negro, no que tange à educação, a Lei 10.639/03, após seis anos de sua existência, infelizmente, ainda não é cumprida em sua totalidade. Muitas vezes ignorada, tanto por gestores educacionais quanto pelos professores, a aplicabilidade referida Lei esbarra em obstáculos como a falta do preparo de professores e do estabelecido pela própria LDBEN. Isso porque ela não prevê, em nenhum de seus artigos, mesmo os acrescentados pela 10.639/03, a capacitação teórico-científica e didático-metodológica dos professores graduados antes da edição da lei, sobre o tema que lhe deu origem.

O não cumprimento da lei em sua totalidade não aparece apenas nos grandes centros. No interior, especialmente nas zonas rurais, o ensino da História e Cultura Afro-brasileira é quase inexistente. Várias são as comunidades que, não obstante o título de quilombolas, portanto, participantes do Programa Brasil Quilombola do governo federal, cujo objetivo é, além de, garantir a posse das terras e promover o desenvolvimento sustentável dessas comunidades, possibilitar a construção de escolas, alfabetização, saúde, habitação, saneamento, emprego, renda e luz elétrica, veem seus direitos, quanto à sua história e tradição de matriz africana, solapados em função de uma cultura de tradição branca e eurocêntrica.

Em visita a algumas dessas comunidades, detecta-se que, em relação à Lei 10.639/03, pouco ou nada tem sido feito, uma vez que a preocupação primeira dos moradores é a de promover o resgate de danças, jogos e cânticos de seus ancestrais que estavam se perdendo. Embora seja fundamental o trabalho de resgate cultural que vem sendo realizado por escolas de nível superior e/ou ONGs, uma vez que os frutos que estão sendo colhidos é a elevação da autoestima das crianças, nota-se que ainda há um véu cobrindo a história e o reconhecimento subjetivo da ascendência negra africana dessas comunidades.

Em conversas informais com algumas professoras sobre o “ocultamento” de suas origens históricas na escola, a alegação é de que não há interesse dos estudantes e dos pais que esse conteúdo seja trabalhado (questiona-se se a vontade de poucos sobrepujou a de muitos). Enquanto condutores desses alunos para a aprendizagem da autonomia e, por sua vez à liberdade, é preciso que haja, por parte desses docentes, maior compromisso com a educação dos jovens, independentemente de serem negros ou brancos. Ter consciência do passado é dar um passo em direção a um futuro mais justo.

Retomando algumas discussões com colegas e alunos da pós graduação, questiona-se, também, se não houve uma assimilação da ideologia excludente, por parte de alguns professores, no processo de condução dos mais novos para o exercício da liberdade e posterior transformação em Sujeitos críticos e conscientes. Ao ser promulgada a Lei 10.639/03, parte das reivindicações de comunidades e movimentos afro-brasileiros era atendida no que tange ao aspecto da adoção de políticas educacionais e estratégias de reconhecimento, valorização e respeito à diversidade. Na medida em que a História e Cultura Afro-brasileira e seu conteúdo programático não são trabalhados no âmbito escolar, será muito difícil desconstruir, pelo menos em algumas comunidades quilombolas, o mito da democracia racial no Brasil. Profª Petronilha Beatriz G. e Silva, relatora do Parecer CNE/CP 003/2004, de 10 de março de 2004, ao discorrer sobre o que representa os estudos da História e Cultura Afro-brasileira, deixa bem claro que são esses conhecimentos que promoverão justiça e direitos sociais igualitários para todos.

É enfática ao frisar que (ainda que longa, vale a pena transcrever a citação) reconhecimento implica em justiça e iguais direitos sociais, civis, culturais e econômicos, bem como valorização da diversidade [...] Reconhecer exige que se questionem relações étnico-raciais baseadas em preconceitos que desqualificam os negros [...] Reconhecer exige a valorização e respeito às pessoas negras, à sua descendência africana, sua cultura e história. Significa buscar, compreender seus valores e lutas, ser sensível ao sofrimento causado por tantas formas de desqualificação: apelidos depreciativos, brincadeiras, piadas de mau gosto sugerindo incapacidade, ridicularizando seus traços físicos, a textura de seus cabelos, fazendo pouco das religiões de raiz africana. Implica criar condições para que os estudantes negros não sejam [...] menosprezados em virtude de seus antepassados terem sido explorados como escravos, não sejam desencorajados [...] de estudar questões que dizem respeito à comunidade negra (PARECER CNE/CP 003/2004, grifos nossos).

Precisamos nos exorcizar do monoculturalismo e eurocentrismo existentes ainda no Brasil e nos conscientizarmos de que a exclusão e inclusão se encontram, ainda, no âmbito da norma e que precisamos, a exemplo das normas sociais de boa convivência, internalizar também essas. Como Sujeitos, podemos escolher nossos caminhos e optarmos por participar desse processo ou não. Há muito por fazer no que diz respeito à inclusão, precisamos reconhecer que o Brasil, por sua formação multiétnica e pluricultural, deveria fazer emergirem os saberes e as epistemologias que sempre estiveram ocultas, apagadas, segregadas...

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No universo do “jogo das diferenças”, precisamos nos atentar para o processo de mundialização e globalização que nos deseja homogeneizar e nos centrar em um critério de comportamento único, fazendo desaparecer nossas singularidades e diversidades. Desde o século XV, assistimos a Europa subjugando povos e civilizações que, por serem diferentes, foram considerados inferiores e, por isso, exterminados. Durante, no mínimo, quinhentos anos a única cultura considerada foi a européia e, a partir dos movimentos de independência do XIX, muitos que foram subordinados aprenderam a subordinar e subjugar.

No decorrer do texto buscou-se dialogar com autores que visualizam a necessidade de mudanças no paradigma educacional ainda vigente. À luz de indagações pessoais e observação empírica, pode-se repensar e reconduzir a reflexão sobre a diversidade no contexto educacional sob o ponto de vista da ética, fazendo vir à tona o compromisso social assumido e a certeza de que precisamos assumir nossa condição de povo mestiço, nossa condição de singularidade de “povo-novo”, para usar uma expressão cara a Darcy Ribeiro, mas fruto de culturas milenares, ricas e únicas. Voltar nosso olhar para a realidade brasileira, principalmente para as regiões mais afastadas, nos faz indagar sobre o cumprimento de leis que possam garantir o mínimo de dignidade aos brasileiros. Mas, ainda que alguns neguem a necessidade de inclusão dos deserdados sociais no Brasil e insistam na existência do mito da democracia racial, ainda que haja um universo de assimetrias étnico-raciais, econômicas e sociais a serem desconstruídas e construídas sobre novas bases, precisamos reconhecer o Outro na sua singularidade e complexidade.

Diante do que assistimos em muitas das várias comunidades quilombolas espalhadas pelo interior do Brasil, é preciso refletir sobre a possibilidade de vivermos mais um engodo, pois se o mito da democracia racial na década de 30, tendo em vista a transição econômico-social pela qual o Brasil passava, se consolidou, quem nos pode “garantir” que, em função da pressão de organismos internacionais, as políticas de inclusão não são, também, uma manobra do neoliberalismo para sobrevivência do capitalismo? Nossas legislações educacionais são profusas em incluir excluindo, é preciso ter em mente que a inclusão do diferente requer a possibilidade do exercício da cidadania em sua plenitude, e essa somente será conquistada e construída a partir do reconhecimento do ser do Outro, no reconhecimento do próprio ser.

Finalizamos com uma colocação de Darcy Ribeiro que julgamos ser pertinente diante do que foi exposto acima: nós, brasileiros, (...), somos um povo em ser, impedido de sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos oriundos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si, afundada na ninguendade. Assim foi até se definir como uma nova identidade étnico-nacional, a de brasileiros. Um povo, até hoje, em ser, na dura busca de seu destino. Olhando-os, ouvindo-os, é fácil perceber que são, de fato, uma nova romanidade, uma romanidade tardia mas melhor, porque lavada em sangue índio e sangue negro (Darcy Ribeiro. O povo brasileiro).

REFERÊNCIAS
BOLDT, Raphael, KROHLING, Aloísio. A (im)possível inclusão do “outro” na sociedade excludente. Revista Intertemas – Toledo Disponível em: <http://intertemas.unitoledo.br> Acesso em: 11 nov. 2009.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 2001.
BRASIL. Decreto nº 4.887 de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br> Acesso em: 11 nov. 2009.
BRASIL. Lei nº 10.639 de 09 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Disponível em: <http://www.smec.salvador.ba.gov.br> Acesso em: 11 nov. 2009.
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Parecer CNE/CP 003/2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br> Acesso em: 11 nov. 2009.
FERREIRA, Amauri Carlos. A morada do educador: ética e cidadania. Educação em Revista, Belo Horizonte, n.43, p. 57-72, jun. 2006.
GONÇALVES, Luiz Alberto, SILVA, Petronilha B. Gonçalves e. O jogo das Diferenças: o multiculturalismo e seus contextos. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914 -1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SANTOS, Boaventura de Sousa. O Fórum social mundial: manual de uso. São Paulo: Cortez, 2005.
VEIGA-NETO, Alfredo, LOPES, Maura Corcini. Inclusão e governamentalidade. Educação sociedade, Campinas, vol.28,n.100 – Especial,p.947-973, out. 2007. Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br> Acesso em: 11 nov. 2009.
SILVA, Sara Maria de Andrade. A “Sociologia das Ausências” como uma nova racionalidade para o conhecimento: breves considerações sobre o campo da mídia e do direito como monoculturas hegemônicas. Revista da FARN, Natal, v.6, n. 1/2, p. 21-32, jan./dez. 2007. Disponível em: <http://www.revistafarn.inf.br> Acesso em: 11 nov. 2009.



[1] SANTOS apud OLIVEIRA, 2008
[2] Dados veiculados pela Agência Brasil em 5/8/2009, disponibilizados em < www.agenciabrasil.gov.br>. Acesso em 11 de Nov. de 2009.
[3] De acordo com Veiga-Neto (2007) por governamento deve-se entender como sendo as práticas da gestão governamental que tem na população seu objeto, na economia seu saber e, nas engrenagens da segurança seu mecanismo básico. Quanto ao termo biopoder, seria um poder que se aplica à vida, aos corpos dos indivíduos; importando com o que esses indivíduos têm em comum: a vida, o pertencimento a uma espécie.
[4] DUSSEL, apud BOLDT; KROHLING (2009)
[5]Este parágrafo preconiza que o ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia.

 
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