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Edições Anteriores 284 Progresso e racionalização: ser diferente na condição urbana
Progresso e racionalização: ser diferente na condição urbana PDF Imprimir E-mail
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Escrito por Solange Faria Prado   
Qui, 11 de Agosto de 2011 00:00

Resumo: O texto pretende discutir a nossa modernidade e a sublimação do Eu e do Outro na paisagem da globalização, tecnologia e progresso a partir de um conto de Ignácio Loyola Brandão “O homem que procurava a máquina” do livro O homem do furo na mão e outras histórias editado em 1993, pela editora Ática.

Palavras-chave: Progresso, racionalização, homem.

Abstrat: The text discusses our modernity and sublimation of self and other in the landscape of globalization, technology and progress from a short story of Ignacio Loyola Brandão "The man who tried the machine" of the book Man's Hole in the hand and other stories published in 1993, published by Attica.

Key words: Progress, rationality, man

Introdução

Busca-se abordar nesse trabalho algumas teorias sobre a transformação do Homem através da transmutação das cidades em nome da modernidade e a sua busca ou afirmação de uma identidade, seja ela, coletiva ou individual, ou ainda o desejo da celebração da diferença. As teorias abordadas estão presentes, segundo nossa análise, em um conto de Ignácio Loyola Brandão, que tem por título O homem que procurava a máquina.

Por uma questão didático-metodológica, dividiu-se o presente ensaio em três partes: na primeira haverá uma breve apresentação do autor, na segunda, a apresentação do conto objeto de análise em que será discutido também o conceito de modernidade, de identidade e diferença, mostrando o quão intrínsecas são as relações entre ambas entidades e, por fim buscarei uma conclusão, se conclusão houver.

O autor

Ignácio Loyola Brandão nasceu em 1936 na cidade paulista de Araraquara. Escritor desde os dezesseis anos, mas abraçando por profissão o jornalismo, tentou, em vão, na década de 60, na cidade de Roma, ser roteirista de cinema, ocasião que lançou seu primeiro livro de contos, Depois do sol. Brandão teve várias de suas obras proibidas no Brasil por ocasião do ocaso democrático do período dos governos militares. Período em que vivíamos sob o signo da repressão de um Estado de Exceção.

Em suas obras, verificamos uma preocupação com o Homem, o Homem moderno, urbano por excelência, já que, segundo o próprio autor, seu “reconhecimento das cidades [e por extensão do Homem] é feito através de muito andar” (BRANDÃO, 1993:76). Serve-se da linguagem escrita para apontar as contradições da sociedade em que vive, mostrando os encontros e desencontros deste Homem e a forma que este se relaciona com a vida em busca de uma identidade, de uma autonomia e de sua liberdade.

Descrevendo cenas, usando termos justos e adequados em parágrafos sintéticos e ordenados, sua obra se desnuda, conferindo plasticidade e vivacidade aos temas abordados. E, é esta vivacidade que transforma seus textos em depoimentos de época, em que o homo sapiens, o homo faber, e, por fim, o homo potens se revela inoperante e indefeso diante da grande engrenagem na/da cidade moderna.

A obra

O conto, O homem que procurava a máquina, é o mais extenso do livro O homem do furo na mão e outras histórias, editado em 1993, pela editora Ática. É, também, o mais enigmático, de acordo com o próprio autor. Escrito entre 1972 e 1974, Ignácio Loyola Brandão questionava-se sobre o que ocorria no Brasil neste período. Politicamente, vivíamos sob o signo do Ato Institucional nº5 – AI5, e éramos governados pelo General Emílio Garrrastazu Médici. Considerado aquele que menos dividia o exército, por ocasião da sucessão de Costa e Silva, Médici presidia sem governar...

Com gestão de 1969 a 1974, foi o governo que mais aparência de tranquilidade demonstrou. Atendendo ao binômio “Segurança com desenvolvimento”, o ministério do general-presidente ficou conhecido, pelos analistas do período, de superministério, pois a união entre militares e tecnocratas – em que, os militares cuidavam da segurança e, os tecnocratas, do desenvolvimento – garantiu o que chamaríamos, mais tarde, de “milagre econômico”.

Com uma média de crescimento da ordem de 10% ao ano, assistíamos à chegada do acelerado progresso em terras brasileiras, patrocinado pelos Estados Unidos via Fundo Monetário Internacional – FMI, em que a agricultura perdia sua importância em função do crescimento industrial. O Brasil precisava entrar no bloco do progresso, da modernidade capitalista, precisava se alinhar aos países desenvolvidos, o que era uma forma de garantir que o comunismo não invadisse terras brasileiras.

O crescimento industrial e a chegada do progresso, em detrimento da agricultura deveu-se às facilidades de crédito para aquisição, pela classe média, de bens duráveis como automóveis, eletro-eletrônicos e eletrodomésticos. Esse crescimento inviabilizava a existência de desempregos, pois, mesmo com os salários arrochados, ninguém reclamava, primeiro que pelo AI 5 todas as bocas estavam amordaçadas e, segundo, que havia a possibilidade de alguma promoção no trabalho e ter uma melhora no padrão de vida.

É este o enredo do conto O homem que procurava a máquina. A trama se desenvolve em uma cidade que vivia da agricultura, onde todos os habitantes, de vida pacata e simples, viviam bem e exportavam quase toda sua produção. Certo dia, “instalaram a grande máquina num bairro operário, sem calçamento e esgotos, não atingido pela especulação imobiliária. Era apenas um bairro distante de uma cidade que vivia da agricultura” (BRANDÃO, 1993:31).

A instalação da máquina, em que nos permitimos chamá-la progresso, alterou todo o modus vivendi e faciendi dos moradores, já que todos foram trabalhar para a dita e, essa, como recompensa... “calçou a rua, colocou rede de água e esgotos, iluminação e placas” (BRANDÃO, 1993:32), ou seja, levou o progresso, a modernidade àquela localidade. Um dos habitantes, resistente a todas aquelas mudanças, persegue com obstinação a ideia de ver o que a máquina fazia e, desta maneira, vai percebendo como as pessoas se tornaram tristes e cabisbaixas com o passar dos anos. Sua percepção só é sentida, e vivida de fato, quando é marginalizado pela sociedade da qual fazia parte.

Apresentados o contexto real e o da trama ficcional do conto procurar-se a, a partir deste ponto, discutir os aspectos que mais nos chamam a atenção. A ambiguidade da modernidade e do progresso. Embora não use o termo modernidade, mas máquina, Loyola Brandão relaciona o termo com progresso.[2]

Na obra Tudo que é sólido desmancha no ar, Marshall Berman, em um capítulo intitulado “Modernismo nas ruas”, aponta-nos a dualidade do modernismo de Charles Baudelaire, que em uma visão pastoral, proclama a natural afinidade entre modernização material e espiritual, onde o progresso é encarado de frente, tendo a burguesia como arauto de mudanças que reestruturariam o mundo em vários aspectos. Tais mudanças, porém, não trazem junto com o progresso, o desenvolvimento social. O progresso esconde de cada um o próprio vazio e desespero, tornando o citadino apenas mais um número na multidão.

Ao remodelar a pacata cidade que vivia da agricultura, a máquina, como o boulevard parisiense, mostra o quão fragmentado está o Homem na cidade moderna. A “máquina” proporcionou uma divisão de classes que, como no boulevard, não possui marcos de separação. A não existência física destes marcos ou fronteiras que bloqueiam os diferentes mostra o interior do Homem moderno, que fragmentado, se torna confuso e superficial. A efemeridade trazida pela modernidade obriga o Homem a usar cada vez mais e mais máscaras para aliviar suas contradições e seus conflitos.

A máquina estava transformando a cidade. (...) [Todos] Estavam diferentes, vidrados na empresa, no funcionamento da grande máquina. As próprias mulheres achavam os maridos esquisitos. Calados, sem outro interesse. Eles passavam a noite ansiosos para que a manhã chegasse e um novo dia de trabalho começasse. (...) Atravessavam os portões e pareciam respirar, aliviados. (...) Por trás daquelas grades, os homens mudavam. (BRANDÃO, 1993:34).

Recorrendo ao conceito de modernismo de Allan G. Johnson (1997) que o aponta como uma visão particular de possibilidades e, direção da vida social que torna o progresso inevitável, mas que fornece uma base para o aumento do controle do Homem, da condição humana, percebemos o quanto a máquina não só mudara a cidade, mas mudara também seus habitantes.

A necessidade de rompimento com o passado, a necessidade de mudança e a transformação do bucólico em complexo, faz com que o homem atual sinta-se, de certa maneira, superior aos seus antepassados. Esta ruptura, ou melhor, esta tentativa de rupturas é bem trabalhada por Sérgio Paulo Rouanet quando evoca o conceito de modernidade estabelecido por Max Weber, para quem “a modernidade é o produto do processo de racionalização que ocorreu no Ocidente, desde o final do século XVII, e que implicou a modernização da sociedade e a modernização da cultura” (ROUANET, 1987:231).

A vida racional fica bastante clara, no conto, quando a mãe, chamando a atenção do filho, dizia:

Vai trabalhar com a máquina. Olha seu pai. Melhorou muito depois que largou aquela hortinha vagabunda que dava uma trabalheira desgraçada. A horta que acabou com as costas dele. Até a bronquite acabou depois que não precisou mais mexer na terra úmida, nem regar os canteiros de manhã e de tarde. Seu pai se arranjou bem por lá, apesar da idade. É um polidor (BRANDÃO, 1993:34).

A racionalização do trabalho, de maneira pragmática, incita-nos a visualizarmos um mundo melhor quando, através dela, podemos usufruir melhor do tempo racionalmente calculado para nosso lazer. Tudo é dosado. A diferenciação no trabalho, o cálculo extremamente científico, dá-nos, no primeiro momento, a falsa noção de melhores condições de vida e consequentemente um prolongamento desta. Esta cientificidade acaba sendo benéfica quando usa da experiência cumulada pela humanidade, para permitir a aceleração e desenvolvimento das forças produtivas.

Aceleração e rapidez. São os termos que acabam funcionando como imperativos categóricos que atuam como um poderoso contrapeso em que a razão acaba prescrevendo a vontade, a necessidade. De maneira que ser e ter rapidez, bens materiais, sucesso enfim, na sociedade contemporânea deveria ser estar engajado e ser cumpridor dos deveres sociais, pois agir conforme a lei é agir conforme a vontade racional.

Tanto o contexto histórico real quanto o fictício, demonstram a existência de um Estado Moderno, com a devida centralização e utilização do aparelho repressor, representado pela força pública para garantir a racionalização. Esta razão, que no século XVIII, prometia arrancar das trevas o homem, “é denunciada [na sociedade contemporânea] como o principal agente da dominação” (ROUANET, 1987:230). Tal dominação, travestida em benefício, rapidez, tecnologias, subjuga o ser humano e o coisifica. No conto, em diálogo com o filho, verificamos este benefício quando o pai mostra-lhe que antes da grande máquina, a cidade era ruim e miserável.

Com o passar do tempo notamos que o esgotamento do modelo de legitimação do poder pelas vias democráticas, exacerba o controle de um pequeno grupo, que se sente mais capacitado que o Outro, por ter um cargo mais elevado junto à grande máquina – consequentemente um status diferente – numa clara demonstração de indiferença e fronteirização pela e da sociedade.

O domínio da cidade era estabelecido nestes setores, enquanto os outros simplesmente não existiam. O prefeito atual, por exemplo, era um homem que trabalhava com os comandos da grande máquina. O que prova sua capacidade técnica, porque, mais do que nunca, a máquina produz (BRANDÃO, 1997:37).

A desmaterialização do social é uma demonstração da exacerbação individualista e narcísica; a diferenciação social é feita pela produção e esta é um exemplo deste individualismo classista. É o dândi que se sobrepõe ao flâneur.

Um flâneur... Esta seria, talvez a melhor maneira de caracterizar o personagem que dá título ao conto. Assim como o flâneur baudelairiano procura a beleza onde aparentemente não existe, nosso flâneur busca respostas que não consegue encontrar ou se as encontra não consegue que sejam verbalizadas, pois estão no mais profundo poço de sua essência “um eu insaciável do não-eu” (BAUDELAIRE, 1996:21). Um Eu que sabe de antemão que é diferente por não acreditar no que os Outros acreditam, e, se Freud estava certo, só sabemos o que somos quando nos vemos no Outro e, esta não é uma verdade para nosso flâneur [3].

O individualismo e o receio, talvez a certeza da efemeridade e transitoriedade do que é moderno, como bem caracteriza Baudelaire, traz no seu cerne a insegurança e a angústia ao Homem moderno, o que o força a viver na fantasia, já que esta tem a função de inibir o Ser humanizado de chegar na angústia básica[4], que por sua vez o liquidaria. A perda da privacidade, do Eu individual, para se tornar um Eu coletivo, em que todos buscam uma transparência, evidencia-se na passagem do conto que relata o medo que se instaura na cidade quando a máquina inicia um processo de necessidade de reparos. A visualização do progresso como bem público acaba fazendo com que o Homem sublime a capacidade de reflexão do seu entorno, já que como analisa nosso flâneur, o progresso, a modernidade passa a agir como um Super Ser Humano, em que, movidos pela necessidade, pela ameaça de um tenebroso futuro, fantasiamos estarmos sempre de bem com a vida.

Escondemos que nos tornamos pessoas fechadas, silenciosas e até mesmo sinistras e, para negarmos, veementemente, nosso medo de tudo isto se acabar, negamos o medo da perda de status, vivemos a vida como se estivéssemos vivendo o último segundo. E, por isto, as pessoas “gastam, compram muito, dão festas. As bebedeiras são imensas, os fins de semana são carregados de acidentes nas ruas e estradas, todo mundo correndo com os carros. Há uma grande necessidade de se aproveitar integralmente cada momento” (BRANDÃO, 1993:48).

Um pouco acima me referiu-se ao nosso flâneur como “um Eu insaciável do Não-eu”, este é o segundo ponto que nos chamou a atenção no conto; a ambiguidade paradoxal do Homem moderno. Loyola Brandão quando, nas entrelinhas, deixa escapar a condição de relação intrínseca entre identidade e diferença nos faz voltar ao texto de Tomaz Tadeu Silva que nos mostra como que identidade e diferença são os dois lados de uma mesma moeda, ou seja, “assim como a identidade depende da diferença, a diferença depende da identidade. Identidade e diferença são, pois, inseparáveis” (SILVA, 2000:75).

Considerando que ambas as categorias são produtos de um intrincado sistema de símbolos e signos, portanto, produtos de uma cultura e de uma sociedade, podemos dizer que estão imbricadas numa extensa rede de poder e que necessitam de representações várias para serem definidas como identidade (aquilo que é) e diferença (aquilo que não é). Neste sistema, na verdade, não há uma sobreposição de uma em relação à outra, há uma disputa sobre os símbolos e signos que serão dominantes. “A afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais” (SILVA, 2000:81).

No conto analisado, esta disputa se evidencia quando nosso protagonista denuncia que aqueles que trabalhavam para a máquina eram darwiniamente superiores àqueles que nela não conseguiram uma colocação. Havia (...), uma clara divisão social. Os que trabalhavam com a grande máquina e os que não trabalhavam. O primeiro grupo tinha status, o segundo era marginalizado. Não trabalhar para a grande máquina significava inteligência menor, incompetência, ineficiência, falta de padrinhos poderosos (BRANDÃO, 1997:37).

Trata-se desta maneira não apenas de uma representação de significantes, na perspectiva pós-estruturalista, pois não basta a “etiqueta” material, a mental e a interior são itens que, ao subjugar os marginais, garantem o poder de representação daqueles que definem a identidade fixa. Observa-se aqui que há, na modernidade, uma acelerada busca por significantes materiais que possam dar um sentimento de pertencimento necessário à sobrevivência do Ser hominizado, já que se trata de um ente, natural e socialmente, gregário.

Sem dúvida alguma vivemos em um mundo, como escreveu Feuerbach, onde a imagem foi sacralizada e a verdade, o real foi transgredido. “A imagem pública transforma-se em mercadoria e se comporta como as leis do mercado” (MATOS, [s.d.]), ou seja, o significante dominante do momento tem maior valor de procura, fazendo com que o Homem esteja numa constante reconstrução e renegociação de sua identidade. A necessidade de estarmos constantemente em processo de negociação de identidade gera não só uma angústia, mas uma grande ansiedade que desemboca em uma total intolerância em relação ao Outro, pois há o medo de se perder na alteridade e, paradoxalmente, há o medo de conseguir estabelecer esta identificação com o Outro, com o diferente.

A intolerância e o preconceito são gerados a partir do momento em que se instala o medo do estranho fora de nós, revelando-nos naquilo que um dia nos foi familiar em algo impregnado de estranho. Frente ao Outro, que recusamos e com o qual nos identificamos sem saber, funde-se a linha tênue que separa o real do fictício estabelecendo assim o conflito da identificação. A intolerância e o preconceito são frutos dos nossos mais secretos sentimentos de inveja. E, se é o medo que favorece a assimilação do que é diferente, é o apelo à identidade que o exorciza (FREUD, 1969:240).

Onde está o ideal do cosmopolitismo da filosofia grega que concebia um mundo sem fronteiras, pois eram encaradas como elementos que separavam e isolavam os homens? Onde está o cerne do humanismo do Renascimento que preconizava a unidade do Homem com a Natureza? Onde está o princípio do humanismo marxista que acreditava na reciprocidade entre culturas diferentes para uma harmonização dos contrários?

O progresso que veio com a modernidade não trouxe a felicidade e harmonia prometidas. Não aceitamos o Outro como um Eu invertido, não inspiramos nem confiança muito menos amizade, somos todos, cada um, uma ilha isolada no oceano e, como disse Spinosa, se há um espaço onde não há amizade e fraternidade não podemos designá-lo de cidade, mas de solidão.

Considerações finais

Preconceito e solidão... São esses os sentimentos que o protagonista nos transmite quando é demitido de seu trabalho porque esteve detido em uma sala escura e não tinha mais idade para ter um trabalho que lhe garantisse o mesmo padrão salarial. Nesta cidade, um homem de cinqüenta anos não consegue emprego com tanta facilidade. Principalmente eu que nunca tinha trabalhado com a empresa, auxiliando a grande máquina. Era uma grande desvantagem. Desconfiavam, era um crédito negativo. (...) Assim aceitei a faxina de um supermercado... (BRANDÃO, 1997:45).

É legítimo afirmar que nas sociedades modernas a mobilidade social, a possibilidade de escolhas diversas e encontros são e estão garantidas, porém, a identidade do Ser se apresenta de forma mais frágil porque está sempre em sobressalto. Esta indefinição, este processo cambiante faz com que sempre retornemos ao passado de forma nostálgica para que assim possamos, pelos menos no passado, encontrarmos um porto seguro.

A personagem central do conto, ao aceitar o trabalho de faxina no supermercado, viu ali não só a possibilidade de observar o ir e vir de funcionários do pátio da empresa, mas da janela do banheiro via também os campos, antes verdes e reluzentes de vida, agora “desolados, áridos, cinzas, onde antigamente havia o cinturão de hortas de que a cidade se orgulhava” (BRANDÃO, 1997:45).

O progresso, a tecnologia e a globalização deu a esta fase do capitalismo a possibilidade de convergir diversas culturas e estilos de vida provocando uma homogeneidade, mas ao mesmo tempo provoca um “distanciamento da identidade relativamente à comunidade e à cultura local” (SILVA, 2000:21). Ou seja, a homogeneidade é, ao mesmo tempo, centrífuga e centrípeta, pois há aqueles que receosos de serem engolidos agem como Davi na presença de Golias e criam “guetos” como forma de marcar sua presença, identidade e diferença no espaço do hegemônico e homogêneo. Assim, a cidade moderna, espaço de todos e para todos, forma um continente insular, onde todos são verdadeiramente ilhas isoladas e solitárias...

Não sou eu que estou louco, é a cidade, esta gente. (...) é pretensão minha querer ser o único normal. Posso estar louco também e esta é uma sensação desagradável. Fico flutuando, sem saber quem sou, sem me relacionar, sem me adaptar a uma realidade. No entanto, qual a realidade desta minha cidade? Não reconheço mais nada e não aceito o que está aí. Deve haver outros como eu, procurando saber. Como encontrá-los para me livrar desta angústia e solidão? Isto é solidão. Não entender o que se passa à sua volta. Querer, e não conseguir. Continuo indagando, sempre que possível. Às vezes, vejo uma cara nova, tento me aproximar. São desconfiados, têm medo de perder os empregos (BRANDÃO, 1997:48).

Concluindo o trabalho sem implicar no término da discussão, há que se fazer mais reflexões sobre o mundo em que vivemos e que tipo de sociedade desejamos num futuro bem próximo. Precisamos nos libertar das trevas sobre o conhecimento da essência do ser humano, do homo sapiens sapiens, que está sendo esquecido e tratado como uma máquina e instrumento apenas de produção.



Referências
AUGÉ, Marc. Não lugares; introdução a uma antropologia da supermodernidade. Trad. Maria Lúcia Pereira. 2.ed.Campinas, SP: Papirus, 1994.
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. O homem do furo na mão e outras histórias. 3.ed. São Paulo: Ática, 1993.
CÁCERES, Florival. História do Brasil. São Paulo: Moderna, 1993.
FREUD, Sigmund. O estranho. In: Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XVII.
HORNEY, Karen. A personalidade neurótica do nosso tempo. Trad. Octávio Alves Velho. 11.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, [s.d].
JAMESON, Frederic. Pós-modernismo; a lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 1996.
JOHNSON, Allan G. Dicionário de sociologia. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
KUSNETZOFF, Juan Carlos. Introdução à psicopatologia psicanalítica. 8.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
LAPLANCHE & PONTALIS. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Trad. Ricardo Correa Barbosa. 5.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.
ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do Iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 1987.
SCORSKE, Carl E. A cidade Segundo o pensamento europeu: de Voltaire a Spengler. Espaço e debates, ano IX, 1989, p. 47-57.
SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença; a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis,RJ: Vozes, 2000.
SPINOZA. Tratado político. Trad. Marlena Chauí. 3.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.(Os pensadores).

 


[1] Mestre em Educação – Formação de Professores pela Universidade Vale do Rio Verde – UNINCOR; professora de graduação na Faculdades Unificadas Doctum de Guarapari

[2] Um progresso que no Brasil vem acompanhado de muita repressão e mordaça. Segundo o escritor a máquina é uma representação do que ocorria em Brasília no período entre 1972 e 1974, ocasião da escrita do referido conto, portanto, historicamente o engajamento do Brasil no mundo do progresso era um item para evitar a instalação do comunismo.

[3] Neste caso, sua identidade se constrói de forma negativa, pois se percebe excluído e marginalizado, não sendo, portanto, um produto de interações positivas, mas de interações negativas entre si e os Outros.

[4] A angústia básica pode ser conceituada como um processo estruturante do Ser. Objetivamente sabe-se que há estreitas correlações entre o Saber e o Poder e, no caso específico, saber da existência de algo e não conhecer sua função e, se conhecer, não poder fazer uso ou usufruir o já sabido e conhecido, porque é proibido, desencadeia uma série de processos que podem gerar até o pânico. (KUSNETZOFF, 1982:154).

 
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