O tempo e a hora da lição de casa Imprimir
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Escrito por Júlia Eugênia Gonçalves   
Qui, 15 de Dezembro de 2005 21:00

A maioria das pessoas já deve ter ouvido aquela história do homem que foi reanimado após longo período de congelamento e que, aturdido diante das mudanças ocorridas no mundo, encontrou refúgio em uma escola onde a mudança não havia chegado.

Esta fábula é usada para demonstrar o paradoxo de uma instituição que deveria ser agente de mudança, mas que reluta em aceitar e acompanhar as transformações sociais.

É comum ouvirmos professores e gestores escolares se queixarem da família que não acompanha mais as atividades de seus filhos na escola, que não se interessa por eles, que tudo delega aos docentes, etc. Como se a família de hoje possuísse a mesma estrutura daquela de anos atrás! Parece que o ingresso da mulher no mercado de trabalho, a nova divisão de tarefas familiares, contextos originais incluindo casais homossexuais, não existissem de fato!

De acordo com esta realidade proponho uma análise da velha prática da lição de casa com suas repercussões na vida das crianças, seus familiares e seus professores. Chamo de "velha" tal atividade, porque considero que este adjetivo se refere a tudo aquilo que não pode mais ser utilizado, porque não possui mais as condições para tal. Não é o mesmo que "antigo" que pode ser utilizado há muito tempo, sem perder, contudo, as características inerentes ao seu valor e utilidade.

Penso que a lição de casa é uma prática envelhecida, que deveria ser descartada ao longo dos próximos anos, porque perdeu sua razão de ser. Devem permanecer as práticas antigas, que sempre sustentaram a transmissão de conhecimentos entre gerações, tais como o cultivo de valores morais, da criatividade, da autonomia.

Neste mundo desigual de nosso tempo, a criança de classe média ou alta tem muitas atividades extra-classe que ocupam seu tempo, tais como esportes, dança, informática, línguas estrangeiras dentre outras, que permitem a ampliação do campo de aprendizagens muito além do que a escola propõe. Aquela das classes menos favorecidas geralmente assume tarefas domésticas muito cedo por força de suas circunstâncias de vida ou é inserida em projetos sociais que ocupam o tempo extra-escolar com atividades de desenvolvimento pessoal propostas por instituições ou associações sem fins lucrativos. Seja qual for a realidade econômica e social, todas são expectadores de TV, recebendo muita informação. A lição de casa torna-se, para elas, uma obrigação difícil neste contexto na medida em que têm muitas outras formas de aprendizagem promovidas pelo ambiente social, apresentadas de forma mais interessante e estimulante.


As famílias, por sua vez, não conseguem mais acompanhar as tarefas escolares propostas para serem realizadas no lar, porque aquela que ocupava esta função não pode mais fazê-lo devido às novas tarefas que foram impostas à mulher / mãe no âmbito das relações produtivas. Além disso, a divisão natural de trabalho ainda não atingiu verdadeiramente a maior parte dos casais. Tanto a mulher pobre, como aquela com melhores condições financeiras, estão inseridas no mercado de trabalho e passa grande parte do seu tempo fora de casa, o que inviabiliza de fato o acompanhamento extra-escolar das crianças. Quem tem condições contrata uma professora particular, ou uma explicadora, para exercer esta função. Mas... quem não tem.... A lição de casa torna-se, de acordo com esta realidade um problema, pois causa conflitos, gritos, brigas, desgastando as relações familiares e ocupando o pouco tempo de convivência que pais e filhos ainda desfrutam; gera culpa nas crianças e nos adultos.

Os professores alegam que a lição de casa é necessária para fixar a aprendizagem. Será que quatro horas diária de aulas não são suficientes para isso? Alegam também que as tarefas passadas para serem realizadas em casa desenvolvem a responsabilidade. Será que as crianças que praticam esportes ou dança, que estudam línguas, não têm oportunidades, em tais atividades, de se tornarem responsáveis? E aquelas que assumem tarefas domésticas no lugar de adultos, que são responsáveis muitas vezes pela criação de irmãos menores? Alegam também que os pais exigem que seus filhos levem lições para casa temendo que se atrasem no desenvolvimento de seus estudos. Será que estes pais são orientados pelos professores no que diz respeito ás novas exigências sociais, às mudanças inseridas na legislação educacional, no sistema de acesso à Universidade?

Resta pensar que a lição de casa é ministrada porque se tornou um hábito e, como todo costume, deixou de ser pensado, de ser problematizado e caiu no círculo vicioso da repetição.

Convém também ressaltar que a necessidade de atenção, de acompanhamento, de encorajamento de uma criança deve ser atendida por sua família e seus professores, mas tal necessidade não pode ser substanciada de forma simplista na lição de casa. Pesquisas indicam que as crianças bem sucedidas na escola são aquelas cujos sentimentos de competência, de pertinência, de individuação, são estimulados pelos adultos que as educam e isso não é conseguido apenas com a realização de tarefas, mas exige dos familiares e educadores um compromisso com cada uma delas.

Possibilitar a reflexão sobre a educação das crianças, auxiliar os pais nesta função é a tarefa da escola e dos professores. Urge que se discuta na reunião de docentes, de pais, no colegiado escolar e nos conselhos comunitários, a permanência da lição de casa e os benefícios e malefícios que ela produz.

Somente após tal reflexão será possível decidir sobre mudanças ou permanências nesta prática tradicional e encaminhar propostas adequadas à nova ordem social vigente. A prática pela prática esgota-se em si mesma. A escola permanece como instituição porque, apesar da aparência conservadora, sempre foi capaz de discutir as questões relevantes para a comunidade que atende, colaborando, desta maneira, para o desenvolvimento de práxis educativas para as gerações futuras.

 

Autor deste artigo: Júlia Eugênia Gonçalves - participante desde Dom, 14 de Agosto de 2005.

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